Os Estados Unidos e Cuba: uma história ímpia
O estabelecimento de laços diplomáticos entre os Estados Unidos e Cuba foi amplamente saudado como um evento de importância histórica.
Na revista "The New Yorker", John Lee Anderson resumiu a reação geral entre os intelectuais liberais.
"Barack Obama mostrou que pode agir como um estadista de peso histórico. Assim como, neste momento, Raúl Castro. Para os cubanos, este momento será tanto emocionalmente catártico quanto historicamente transformador. O relacionamento deles com seu vizinho americano rico e poderoso do norte permaneceu congelado nos anos 60 por 50 anos. Em um grau surreal, seus destinos também foram congelados."
"Para os americanos, isso também é importante. A paz com Cuba nos leva momentaneamente de volta àquela época dourada em que os Estados Unidos eram uma nação amada por todo o mundo, quando um jovem e simpático JFK estava na presidência –antes do Vietnã, antes de (Salvador) Allende (o presidente chileno), antes do Iraque e de todas as outras misérias– e nos permite nos sentir orgulhosos de nós mesmos por finalmente fazermos a coisa certa."
O passado não é tão idílico como retratado na imagem de Camelot. O presidente John F. Kennedy não foi "antes do Vietnã", nem mesmo antes de Allende e do Iraque. Mas vamos deixar isso de lado.
Em Cuba, Kennedy herdou a política de embargo do presidente Dwight Eisenhower, assim como seus planos formais para derrubada do regime, que Kennedy rapidamente botou em prática com a invasão à Baia dos Porcos em abril de 1961.
Na primeira reunião do Gabinete de Kennedy após a invasão fracassada, o clima era "quase selvagem", notou de modo privado o subsecretário de Estado, Chester Bowles. "Havia uma reação quase frenética por um programa de ação."
Kennedy articulou a histeria em seus pronunciamentos públicos: "As sociedades complacentes, autoindulgentes e moles estão prestes a ser varridas com os escombros da história. Apenas os fortes (...) podem sobreviver", disse ao país, apesar de estar ciente, como disse de forma privada, que os aliados "acham que estamos ligeiramente dementes" em relação a Cuba. Não sem razão.
As ações de Kennedy fizeram jus às suas palavras. Ele lançou uma campanha homicida para levar "os terrores da terra" a Cuba –uma frase do historiador e conselheiro de Kennedy, Arthur Schlesinger, referindo-se ao projeto que o presidente designou ao seu irmão Robert Kennedy como sendo sua mais alta prioridade.
A campanha, conhecida como Operação Mangusto, envolveu operações paramilitares, guerra econômica e sabotagem, que somadas resultaram nas mortes de milhares de cubanos.
Esses terrores da terra foram um importante fator para levar o mundo à beira da guerra nuclear durante a crise dos mísseis cubanos em outubro de 1962, como revelam estudos recentes. Mesmo assim, o governo Kennedy retomou os ataques terroristas assim que a crise passou.
Uma forma padrão dos apologistas para evitar esses assuntos desagradáveis é se ater aos planos de assassinato de Fidel Castro pela CIA, ridicularizando seu absurdo. Eles de fato existiram, mas foram apenas uma pequena nota de rodapé.
Ao tomar posse após o assassinato de Kennedy, o presidente Lyndon Johnson relaxou o terrorismo. Mas não deixaria Cuba sobreviver em paz. Johnson explicou ao senador J. William Fulbright, presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, que apesar de "eu não estar interessado em algo como a Baía dos Porcos", ele queria conselho sobre "como poderíamos apertar as porcas mais do que estamos fazendo".
Como observa o historiador latino-americano Lars Schoultz, "apertar as porcas tem sido a política americana desde então".
Certamente alguns sentiram que esses meios delicados não bastavam –como, por exemplo, o chefe de Gabinete do presidente Richard Nixon, Alexander Haig, que pediu ao presidente que "apenas me dê a ordem e eu transformarei aquela maldita ilha em um estacionamento".
A eloquência de Haig capturou vividamente a longa frustração dos líderes americanos com "aquela pequena república cubana infernal", a frase de Theodore Roosevelt enquanto reclamava da não disposição de Cuba em aceitar graciosamente a invasão americana de 1898 para bloquear sua libertação da Espanha e transformá-la em uma colônia virtual.
Louis Pérez, o historiador de Cuba, escreve que a "Guerra Hispano-Americana" (como é conhecida em sua nomenclatura imperial), saudada nos Estados Unidos como uma intervenção humanitária para libertar Cuba, atingiu seus objetivos: "Uma guerra cubana de libertação foi transformada em uma guerra americana de conquista", visando obscurecer a vitória cubana que a invasão rapidamente abortou.
O resultado aliviou as ansiedades americanas a respeito "do que era anátema para todos os autores de políticas norte-americanos desde Thomas Jefferson –a independência cubana".
Como as coisas mudaram em dois séculos.
Ocorreram alguns esforços hesitantes para melhorar as relações nos últimos 50 anos, analisados em detalhes por William LeoGrande e Peter Kornbluh no livro recente deles, "Back Channel to Cuba".
Se deveríamos nos sentir "orgulhosos de nós mesmos" pelos passos dados pelo presidente Barack Obama pode ser debatido, mas eles são "a coisa certa", apesar do embargo esmagador permanecer em vigor em desafio a todo o mundo (com exceção de Israel) e o turismo ainda estar proibido.
Em seu discurso à nação anunciando a nova política, o presidente também deixou claro que, em outros aspectos, a punição a Cuba por se recusar a se curvar à vontade e violência americana continuará.
Vale a pena notar as palavras de Obama:
"Orgulhosamente, os Estados Unidos têm apoiado a democracia e os direitos humanos em Cuba ao longo dessas cinco décadas. Nós o fizemos principalmente por meio de políticas que visavam isolar a ilha, impedindo a viagem e comércio mais básicos que os americanos podem desfrutar em qualquer outro lugar. E apesar dessa política ter raízes na melhor das intenções, nenhum outro país se juntou a nós na imposição dessas sanções e elas tiveram pouco efeito, fora fornecer ao governo cubano uma desculpa para impor restrições à sua população. (...) Hoje, eu estou sendo honesto com vocês. Nós nunca poderemos apagar a história entre nós."
Esse pronunciamento impressionante traz à mente as palavras de Tácito: "O crime, assim que é exposto, não tem refúgio exceto na audácia".
Obama certamente está ciente da história de fato, que inclui não apenas a guerra terrorista e o embargo econômico, como também a ocupação militar do sudeste de Cuba por mais de um século, incluindo a Baía de Guantánamo, um importante porto. Em comparação, a tomada ilegal da Crimeia pelo presidente russo, Vladimir Putin, parece quase benigna.
A vingança contra os cubanos insolentes que resistiram à dominação americana tem sido tão extrema que até mesmo prevaleceu sobre segmentos poderosos da comunidade empresarial –farmacêutico, agronegócio e energia– que fizeram lobby pela normalização. Esse é um desdobramento incomum na política externa americana.
As políticas vingativas de Washington virtualmente isolaram os Estados Unidos no hemisfério e provocaram desprezo mundial. Washington e seus acólitos gostam de fingir que "isolaram" Cuba, como Obama disse, mas a história mostra claramente que os Estados Unidos é que foram isolados –provavelmente o principal motivo para a mudança parcial de curso.
A opinião doméstica sem dúvida também pesou na "medida histórica" de Obama –apesar do público, de modo irrelevante, ser a favor da normalização há muito tempo. Uma pesquisa da "CNN" em 2014 mostrou que apenas um quarto dos americanos atualmente considera Cuba uma ameaça séria aos Estados Unidos, em comparação a mais de dois terços 30 anos atrás. Com a diminuição dos temores, talvez possamos relaxar um pouco nossa vigilância.
Nos comentários sobre a decisão de Obama, um tema principal tem sido que os esforços benignos de Washington de levar democracia e direitos humanos aos cubanos sofredores, manchados apenas pelas peripécias infantis da CIA, foram um fracasso. Nossas metas elevadas não foram atingidas, de modo que uma mudança de curso relutante é necessária.
A mentalidade imperial é maravilhosa de se ver. Dificilmente passa um dia sem novas ilustrações. Nós podemos adicionar a nova "medida histórica" em relação a Cuba, e sua recepção, à lista notável.
Tradutor: George El Khouri AndolfatoNa revista "The New Yorker", John Lee Anderson resumiu a reação geral entre os intelectuais liberais.
"Barack Obama mostrou que pode agir como um estadista de peso histórico. Assim como, neste momento, Raúl Castro. Para os cubanos, este momento será tanto emocionalmente catártico quanto historicamente transformador. O relacionamento deles com seu vizinho americano rico e poderoso do norte permaneceu congelado nos anos 60 por 50 anos. Em um grau surreal, seus destinos também foram congelados."
"Para os americanos, isso também é importante. A paz com Cuba nos leva momentaneamente de volta àquela época dourada em que os Estados Unidos eram uma nação amada por todo o mundo, quando um jovem e simpático JFK estava na presidência –antes do Vietnã, antes de (Salvador) Allende (o presidente chileno), antes do Iraque e de todas as outras misérias– e nos permite nos sentir orgulhosos de nós mesmos por finalmente fazermos a coisa certa."
O passado não é tão idílico como retratado na imagem de Camelot. O presidente John F. Kennedy não foi "antes do Vietnã", nem mesmo antes de Allende e do Iraque. Mas vamos deixar isso de lado.
Em Cuba, Kennedy herdou a política de embargo do presidente Dwight Eisenhower, assim como seus planos formais para derrubada do regime, que Kennedy rapidamente botou em prática com a invasão à Baia dos Porcos em abril de 1961.
Na primeira reunião do Gabinete de Kennedy após a invasão fracassada, o clima era "quase selvagem", notou de modo privado o subsecretário de Estado, Chester Bowles. "Havia uma reação quase frenética por um programa de ação."
Kennedy articulou a histeria em seus pronunciamentos públicos: "As sociedades complacentes, autoindulgentes e moles estão prestes a ser varridas com os escombros da história. Apenas os fortes (...) podem sobreviver", disse ao país, apesar de estar ciente, como disse de forma privada, que os aliados "acham que estamos ligeiramente dementes" em relação a Cuba. Não sem razão.
As ações de Kennedy fizeram jus às suas palavras. Ele lançou uma campanha homicida para levar "os terrores da terra" a Cuba –uma frase do historiador e conselheiro de Kennedy, Arthur Schlesinger, referindo-se ao projeto que o presidente designou ao seu irmão Robert Kennedy como sendo sua mais alta prioridade.
A campanha, conhecida como Operação Mangusto, envolveu operações paramilitares, guerra econômica e sabotagem, que somadas resultaram nas mortes de milhares de cubanos.
Esses terrores da terra foram um importante fator para levar o mundo à beira da guerra nuclear durante a crise dos mísseis cubanos em outubro de 1962, como revelam estudos recentes. Mesmo assim, o governo Kennedy retomou os ataques terroristas assim que a crise passou.
Uma forma padrão dos apologistas para evitar esses assuntos desagradáveis é se ater aos planos de assassinato de Fidel Castro pela CIA, ridicularizando seu absurdo. Eles de fato existiram, mas foram apenas uma pequena nota de rodapé.
Ao tomar posse após o assassinato de Kennedy, o presidente Lyndon Johnson relaxou o terrorismo. Mas não deixaria Cuba sobreviver em paz. Johnson explicou ao senador J. William Fulbright, presidente do Comitê de Relações Exteriores do Senado, que apesar de "eu não estar interessado em algo como a Baía dos Porcos", ele queria conselho sobre "como poderíamos apertar as porcas mais do que estamos fazendo".
Como observa o historiador latino-americano Lars Schoultz, "apertar as porcas tem sido a política americana desde então".
Certamente alguns sentiram que esses meios delicados não bastavam –como, por exemplo, o chefe de Gabinete do presidente Richard Nixon, Alexander Haig, que pediu ao presidente que "apenas me dê a ordem e eu transformarei aquela maldita ilha em um estacionamento".
A eloquência de Haig capturou vividamente a longa frustração dos líderes americanos com "aquela pequena república cubana infernal", a frase de Theodore Roosevelt enquanto reclamava da não disposição de Cuba em aceitar graciosamente a invasão americana de 1898 para bloquear sua libertação da Espanha e transformá-la em uma colônia virtual.
Louis Pérez, o historiador de Cuba, escreve que a "Guerra Hispano-Americana" (como é conhecida em sua nomenclatura imperial), saudada nos Estados Unidos como uma intervenção humanitária para libertar Cuba, atingiu seus objetivos: "Uma guerra cubana de libertação foi transformada em uma guerra americana de conquista", visando obscurecer a vitória cubana que a invasão rapidamente abortou.
O resultado aliviou as ansiedades americanas a respeito "do que era anátema para todos os autores de políticas norte-americanos desde Thomas Jefferson –a independência cubana".
Como as coisas mudaram em dois séculos.
Ocorreram alguns esforços hesitantes para melhorar as relações nos últimos 50 anos, analisados em detalhes por William LeoGrande e Peter Kornbluh no livro recente deles, "Back Channel to Cuba".
Se deveríamos nos sentir "orgulhosos de nós mesmos" pelos passos dados pelo presidente Barack Obama pode ser debatido, mas eles são "a coisa certa", apesar do embargo esmagador permanecer em vigor em desafio a todo o mundo (com exceção de Israel) e o turismo ainda estar proibido.
Em seu discurso à nação anunciando a nova política, o presidente também deixou claro que, em outros aspectos, a punição a Cuba por se recusar a se curvar à vontade e violência americana continuará.
Vale a pena notar as palavras de Obama:
"Orgulhosamente, os Estados Unidos têm apoiado a democracia e os direitos humanos em Cuba ao longo dessas cinco décadas. Nós o fizemos principalmente por meio de políticas que visavam isolar a ilha, impedindo a viagem e comércio mais básicos que os americanos podem desfrutar em qualquer outro lugar. E apesar dessa política ter raízes na melhor das intenções, nenhum outro país se juntou a nós na imposição dessas sanções e elas tiveram pouco efeito, fora fornecer ao governo cubano uma desculpa para impor restrições à sua população. (...) Hoje, eu estou sendo honesto com vocês. Nós nunca poderemos apagar a história entre nós."
Esse pronunciamento impressionante traz à mente as palavras de Tácito: "O crime, assim que é exposto, não tem refúgio exceto na audácia".
Obama certamente está ciente da história de fato, que inclui não apenas a guerra terrorista e o embargo econômico, como também a ocupação militar do sudeste de Cuba por mais de um século, incluindo a Baía de Guantánamo, um importante porto. Em comparação, a tomada ilegal da Crimeia pelo presidente russo, Vladimir Putin, parece quase benigna.
A vingança contra os cubanos insolentes que resistiram à dominação americana tem sido tão extrema que até mesmo prevaleceu sobre segmentos poderosos da comunidade empresarial –farmacêutico, agronegócio e energia– que fizeram lobby pela normalização. Esse é um desdobramento incomum na política externa americana.
As políticas vingativas de Washington virtualmente isolaram os Estados Unidos no hemisfério e provocaram desprezo mundial. Washington e seus acólitos gostam de fingir que "isolaram" Cuba, como Obama disse, mas a história mostra claramente que os Estados Unidos é que foram isolados –provavelmente o principal motivo para a mudança parcial de curso.
A opinião doméstica sem dúvida também pesou na "medida histórica" de Obama –apesar do público, de modo irrelevante, ser a favor da normalização há muito tempo. Uma pesquisa da "CNN" em 2014 mostrou que apenas um quarto dos americanos atualmente considera Cuba uma ameaça séria aos Estados Unidos, em comparação a mais de dois terços 30 anos atrás. Com a diminuição dos temores, talvez possamos relaxar um pouco nossa vigilância.
Nos comentários sobre a decisão de Obama, um tema principal tem sido que os esforços benignos de Washington de levar democracia e direitos humanos aos cubanos sofredores, manchados apenas pelas peripécias infantis da CIA, foram um fracasso. Nossas metas elevadas não foram atingidas, de modo que uma mudança de curso relutante é necessária.
A mentalidade imperial é maravilhosa de se ver. Dificilmente passa um dia sem novas ilustrações. Nós podemos adicionar a nova "medida histórica" em relação a Cuba, e sua recepção, à lista notável.
Fonte: http://noticias.uol.com.br/blogs-e-colunas/coluna/noam-chomsky/2015/01/07/os-estados-unidos-e-cuba-uma-historia-impia.htm (Acesso em 29.04.2015)
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