Viver da morte
Há pouco tempo ficamos
sabendo que um grande amigo estava doente, acompanhamos a distância todo o seu
tratamento e o sofrimento da família. Depois de certo tempo estava ele
recuperado de um grave problema no fígado, era assim que parecia. Pouco tempo
depois o problema retorna e agora somente um transplante pode realmente
mantê-lo vivo. Diante desta situação sua esposa comenta em uma conversa: “é
ruim imaginar que alguém deve morrer para ele viver”. Para ela não é um dilema
vazio, mas a dura realidade de que alguém vai ter de morrer para que seu marido
continue vivo. Para ela, o fato de o marido viver da morte de outra pessoa é
algo que desconforta, incomoda. Depois de refletir um pouco sobre sua situação
pensei na minha própria, de terapeuta. Por natureza um terapeuta é alguém que
vive do sofrimento de outras pessoas, ou seja, se não houvesse sofrimento, dor,
provavelmente não haveria ganhos. Há, muito provavelmente, muitos outros
profissionais que vivem da morte do outro, do sofrimento alheio.
No entanto, quando uma
pessoa chega ao ponto de precisar de transplante, por qualquer motivo que seja
ela está dando ao órgão da pessoa que faleceu a chance de continuar vivo. Por
exemplo, morre um jovem em um acidente de automóvel, seus órgãos estão em perfeito
estado, a pessoa que precisa destes órgãos pode dar a eles continuidade de
vida. Já houve alguns casos em que a família do doador vê na pessoa que recebeu
o órgão a continuidade da vida, alguém com quem estabelecem um vínculo para o
resto da vida. Por mais que a pessoa que precisa de transplante espere pela
morte de alguém para continuar vivendo não é ela quem diz quem e quando vai
morrer para obter o que precisa. É ela o receptáculo para a continuidade, a
oportunidade que um órgão tem de continuar vivendo, como uma parte de uma
pessoa que continua sua jornada em outro lugar.
Na terapia não é muito
diferente: o terapeuta é aquele que, mais do que muitas outras pessoas,
consegue trabalhar com a dor do outro. É ele a pessoa que tem as condições
para, mesmo com toda a dor que compartilha com a pessoa, encontrar um caminho
onde não exista dor ou sofrimento. Não é o terapeuta quem provoca ou deseja a
dor, mas sim aquele que estuda, se prepara, para estar diante de alguém como um
caminho. Muito ao contrário do que parece, não vive ele da dor das pessoas que
lhe procuram, mas da alegria de suas realizações, do encantamento de seus
sonhos, do brilho ainda existente em cada olhar. Quando não consegue auxiliar
uma pessoa em seu caminho também se chateia, chora, sofre a dor de não ter
conseguido.
Assim, profissionais
que pretensamente vivem da morte do outro, assim como pessoas que esperam pela
morte do outro para a doação do órgão, são as oportunidades de a vida
continuar. É muito provável que um médico não tenha como sonho ver as pessoas
doentes, mas que elas estejam bem, saudáveis. A dor e a doença fazem parte da
vida de cada um, assim como os profissionais que abraçaram a causa de estar
junto nos momentos mais difíceis. Muitos destes profissionais dedicam suas
vidas para que os outros possam continuar vivos, dedicam sua saúde para que
outros possam permanecer saudáveis, dedicam sua sanidade para que outros
permaneçam sãos. Não se vive da morte do outro, mas se dá oportunidade do outro
continuar vivo em mim.
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