Dores
existenciais
Vivemos numa
época em que as dores são consideradas como ruins, uma dor é algo a ser
debelado. Antigamente quando uma criança cortava o dedo, era tratada com
Merthiolate e Mercúrio Cromo. Um dos desafios às mães era convencer a criança a
se deixar medicar, pois eram medicamentos que causavam dor. Geralmente a mãe
dizia: “Fica quieto, se dói, cura”. Atualmente o medicamento já não causa mais
dor, a fórmula foi alterada de maneira que a aplicação seja indolor. Quando não
se tinha Merthiolate utilizava-se álcool ou até mesmo a velha e boa cachaça com
arnica. Aqueles que passaram por estes tratamentos devem lembrar que era
bastante doloroso a aplicação destes medicamentos sobre a ferida. Era também
uma época em que a criança tinha desde cedo uma participação forte na família,
em muitos casos com tarefas como alimentar os animais, varrer o pátio, capinar
a horta. As dificuldades da família eram partilhadas, não se “tapava o sol com
a peneira” para que a criança não sofresse.
Esta
postura menos polida, dito por alguns, mas realista, era a maneira que as
famílias antigas tinham para preparar suas crianças para a vida. Eram crianças,
hoje adultos, que desde cedo percebiam que na vida passar por algumas dores era
algo absolutamente normal e natural. Sabiam que depois de um dia capinando as
mãos teriam bolhas e estas provocariam dores; com o tempo e o trabalho a pele
da mão engrossava e já não fazia mais calo. Não se pode dizer que era algo
agradável, bom, desejável, mas era algo pelo qual era necessário passar. Colaborar
com a família passava pela dor do trabalho físico.
Existencialmente
as coisas não são muito diferentes: existem dores que precisam ser vividas para
que nos façam mais fortes. Imagine uma mocinha que arruma um namorado. Pelos
acasos da vida seu relacionamento não funciona e ela sofre. Sua mãe, por temer
o pior recomenda um remedinho para aliviar essa dor ou leva a filha às compras
para esquecer. O que esta mãe está fazendo? Muito provavelmente está evitando
que a filha crie resistência, que aprenda com o que aconteceu, que vivencie de
maneira produtiva aquela dor existencial. Sofrer por sofrer não é recomendável,
mas eliminar todo o sofrimento também não é produtivo.
Em alguns
casos uma depressão pode ser o melhor remédio que uma pessoa encontrará para
muitos dos males. Em um de meus atendimentos ouvi o seguinte: “Eu estava em
depressão, estava triste, não queria conversar e as pessoas diziam que eu não
tinha motivo para estar assim. Eu sabia, mas quanto mais elas me diziam, mais
depressiva eu ficava. Eu estava vivendo minha depressão, era um momento que eu
precisava viver. Depois que vivi segui em frente”. É interessante perceber que
viver uma dor existencial não significa ser masoquista, mas viver a
consequência de uma série de fatores que podem ser ruins agora, mas serão muito
bons no futuro. Na primeira vez em que se vai à academia ao fazer exercícios os
músculos doem, e é sinal de que os exercícios estão fazendo efeito.
Uma pessoa
que usa dispositivos para anestesiar uma dor pode pouco a pouco aumentar a dose
para uma dor que é, aparentemente, cada vez maior. Algumas pessoas ao
anestesiar suas dores também anestesiam seus prazeres. Correm o risco de chegar
num tempo em que não sabem mais o que é dor ou prazer, ou seja, ficam anestesiadas
para a vida.
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