Encontro Nacional

Encontro Nacional

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Fala por mim!

Há uma passagem da Bíblia que é mais ou menos assim: “Dize-me com quem andas e te direi quem és”. Essa frase trata de considerar as companhias que tenho como um testemunho de quem sou. Sendo assim, se ando com pessoas religiosas, logo, sou religioso, se ando com pessoas bonitas, logo, sou bonito. O primeiro exemplo fica fácil de aceitar, mas o segundo nem tanto. Isso acontece por haver uma série de problemas quando tentamos definir uma pessoa. Na realidade, não seria necessário definir uma pessoa, mas geralmente conhecer passa pela definição, não se tem como conhecer algo que seja indefinido. Ao menos é o que temos experimentado depois do advento da ciência.
Na atualidade, existem tantas formas diferentes de se montar um “perfil” de uma pessoa, ou uma definição, que fica difícil saber o que exatamente diz algo sobre ela. Há algumas semanas, trocando de canais na televisão, vi uma reportagem na qual uma pessoa definia a personalidade através da roupa. Para este profissional, as roupas diziam tudo da pessoa, segundo ela, era possível traçar um perfil completo apenas pela roupa. Interessei-me pelo assunto e fui para a internet para ver quantas seriam as maneiras de se criar um perfil de uma pessoa. O susto foi grande, pois, segundo a rede, existem centenas de maneiras de se dizer quem é a pessoa, como ela é, sem que ela se quer fale.
Entre os métodos que encontrei há um que funciona através da escrita. A pessoa que apresentava esta técnica dizia que, segundo os traços de cada letra, seria possível descrever a personalidade do indivíduo. Havia uma outra, essa sim é boa: a pessoa conseguia dizer tudo sobre a pessoa analisando a fisionomia dos dedos do pé. Outro ainda conseguia fazer o mesmo que os anteriores só observando o formato do nariz. Há aqueles profissionais que dão um perfil psicológico pelas roupas, organização do guarda roupa, postura do corpo e assim por diante.
Em Filosofia Clinica temos um cuidado muito maior para este tipo de trabalho. Quando uma pessoa chega ao meu consultório, não tenho a mínima ideia do que nela ou fora dela fala sobre sua pessoa. Em outras palavras, não sei se seu nariz, seus dedos do pé, sua roupa, gestos, são as ferramentas que vão me mostrar quem ela é. Em cada pessoa há elementos muito específicos que dizem quem ela é e isto só pode ser observado na história de vida de cada um. Não tenho como dizer que uma pessoa está sempre triste porque está vestida de preto, pode ser apenas que ela goste dessa cor. Não tenho como dizer que uma pessoa é séria porque vive com a testa franzida, pode ser que tenha aprendido a ser assim.
Em Filosofia Clinica, o tópico expressividade é aquele que trata do quanto a pessoa flui em direção ao outro quando se comunica. A expressividade de uma pessoa pode acontecer por diversas maneiras e algumas, talvez, nem saibam como falar delas mesmas. Algumas pessoas são extremamente expressivas quando cantam, dançam, falam, escrevem, estão sempre dizendo delas mesmas. Outras, no entanto, podem cantar muito bem, escrever de maneira especial, mas em nada falarem de si. É preciso conhecer este outro que se coloca diante de mim para saber o que da vida dele fala sobre ele.
Para finalizar este artigo, coloco uma proposta: se você, leitor, tivesse uma pergunta que quisesse respondida num dos meus artigos, o que perguntaria? Envie sua questão e esta será respondida de acordo com as técnicas e ferramentas da Filosofia Clínica.

Rosemiro A. Sefstrom

terça-feira, 29 de abril de 2014

A razão decide!

Em vários artigos abordei sobre a historicidade enquanto material de que é feita a clínica filosófica, em outros, discorri sobre o exame das categorias. Poucas vezes, no entanto, falei sobre submodos. Em Filosofia Clínica, a historicidade é o trabalho de coleta dos dados de vida da pessoa. Com estes dados o filósofo clínico montará o que chamamos de Estrutura de Pensamento (EP), ou seja, verificará como o conteúdo existencial se combina na pessoa formando sua malha intelectiva. A EP é o que a pessoa tem como conteúdo, aquilo que ela acumulou ao longo da vida a partir de tudo o que viveu. Mas, além da EP, ao longo da historicidade o terapeuta também observa algo chamado de submodo. Este pode ser descrito como o jeito de ser da pessoa, a maneira como a pessoa coloca em movimento os conteúdos da EP. O submodo é identificado na historicidade da pessoa e alerta ao filósofo o que e como ela faz para lidar com seus conteúdos existenciais.
Algumas vezes a pessoa usa seus submodos de forma produtiva e vive bem, mas outras vezes usa de forma incorreta e isto lhe provoca muito sofrimento. Quando o filósofo clínico coleta estes dados, observa ainda a que conteúdos da EP estes submodos estão conectados, isto é, o que fará com que o trabalho possa realmente acontecer. Quando o terapeuta se apropriou do conhecimento de como a pessoa coloca seu conteúdo em movimento e usa com ela já é chamado de procedimento clínico. Agora é o jeito da pessoa usado de forma didática com ela mesma, retirando-se dela o que precisa e devolvendo-se de maneira terapêutica.
Um submodo interessante é o esquema resolutivo, que algumas pessoas usam muito bem e outras sequer sabem o que é. Este submodo é o colocar as coisas na balança, o famoso pensar os pontos negativos e positivos de algo antes de decidir. Em empresas este é um procedimento de ponta, faz parte da maior parte das decisões visto que faz o administrador pensar os prós e os contra de sua decisão. Só que o esquema resolutivo só terá validade se realmente for pensado em termos de pontos positivos e negativos, sem a interferência de nenhum outro conteúdo.
Alguns maridos, com desejo de comprar um carro, sentam-se em casa com a esposa, debatendo com ela debatem sobre as vantagens e desvantagens da compra. Mas, qual será a decisão ao final? Se o esquema resolutivo for realizado corretamente, vencerá o lado que propor as prioridades do casal. No entanto, alguns esquemas começam muito bem, mas quando o casal percebe que o momento não é para se comprar o carro pára e decide pela emoção ou pela busca. Este submodo não é exatamente uma poesia, mas ajuda muito na tomada de decisões se a questão for puramente prática.
Assim como as ferramentas de um marceneiro, mecânico ou qualquer outro profissional, os submodos também podem ser mais ou menos adequados. O esquema resolutivo é um submodo de cunho mais mecânico, tendendo para decisões que levem em conta apenas aspectos ou proposições racionais. Mas algumas pessoas o usam para questões emocionais, tentando fazer a conta de quantas coisas boas tem mais do que ruins em um relacionamento. Se a pessoa for estritamente racional e o relacionamento for avaliado deste ponto de vista, a conclusão será uma, mas se houver amor e não houver objetividade a pessoa pode estar enganando a si própria. Apenas como um exemplo, pode-se citar o caso daquela menina que tem um namorado grosseiro, distante, mal educado, vadio. Se ela fizer um esquema resolutivo e colocar tudo isso na balança ela terminará o relacionamento. Porém, isso não acontece pois ela ama o rapaz.
O problema é que alguns desenvolveram na vida uma só ferramenta existencial e fazem praticamente tudo pelo mesmo caminho. Usam os mesmos submodos para situações muito diferentes e isso lhes traz grandes dificuldades e sofrimentos. Como diz o ditado: “Quando só se tem martelo, muita coisa começa a parecer prego”.

Rosemiro A. Sefstrom

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A luz que cega!

Há uma obra de José Saramago publicada em 1995 com tradução em várias línguas, chamada “Ensaio Sobre a Cegueira”. Esta obra tornou-se filme em 2008 pelas mãos do diretor Fernando Meirelles e também pode vista nos teatros. A história conta de um japonês que, por não conseguir enxergar, pede ajuda até que alguém o leva até em casa e acaba por roubar o seu carro. No dia seguinte o japonês e sua esposa vão ao oftalmologista para saber o que está acontecendo e aos poucos uma epidemia se alastra e, com exceção da mulher do oftalmologista, todos ficam cegos. Devido ao alastramento da epidemia o governo decreta quarentena e separa as pessoas cegas das outras, mas mesmo assim a epidemia continua se alastrando.
Presos em uma construção, confinados a uma convivência sem a visão, os internos formam dois grupos e pouco a pouco a convivência se torna insustentável. Até que chega ao ponto em que um dos grupos, por questão de sobrevivência acaba por incendiar o lugar e fugir, mesmo às cegas. Já em casa, depois de uma longa e exaustiva caminhada, cada um faz um pedido, o que gostaria naquele momento. O interessante é que, mesmo sem enxergar, nenhum deles pedem o retorno da visão, cada um pede coisas simples, em sua maior parte o que dá o conforto à alma. Enquanto não enxergavam, os personagens diziam ver uma luz branca. Por vezes não é o escuro que cega as pessoas, mas a claridade.
No dia-a-dia em contato com pessoas de diferentes áreas de formação, status econômico, religião ou religiosidade, filosofia de vida e tantas outras diferenças podemos escutar: “Há uma luz no fim do túnel”. Estas pessoas estão vivendo o aqui e o agora, mas o seu pensamento está tão focado num futuro que “vai chegar” que o que veem é uma luz. Esta luz que veem é diferente para cada uma, para alguns a luz no fim do túnel é o dinheiro para pagar as contas no mês que vem. Para outras, a luz no fim do túnel é o emprego que desejam para si. Existem ainda pessoas para as quais a luz no fim do túnel é o relacionamento que um dia pode dar certo. Apenas para fechar as possíveis luzes, pense em qual será a luz no fim do seu túnel.
Olhando fixamente para esta luz estas pessoas passam dias, semanas, meses, anos caminhando naquela direção. Todo o tempo que caminham um pensamento é recorrente: “Quanto eu chegar lá...” Esta luz os dá força, alimenta sua alma e faz com que caminhem em passos largos, firmes e decididos, voltados para a claridade que é onde colocaram seus objetivos. Estão tão resolutos em sua caminhada e olham tão fixamente para a luz que tudo o que está na sombra passa despercebido, ou seja, ao olhar fixamente para a luz não conseguem enxergar o que está à sombra dela.
Esta luz, a claridade intensa que foi colocada como objetivo de vida pode cegar a pessoa para as vivências do presente. Quando chegar ao objetivo, conquistar a tão buscada luz no fim do túnel, pode olhar para trás iluminado pela claridade e perceber que muitas coisas boas ficaram pelo caminho. Ao focar a claridade do tão sonhado emprego a família pode ter ficado na sombra e quando se chega ao objetivo e olha-se para trás, ela já pode não existir mais. Ao ganhar o dinheiro que queria para pagar as contas e ter um tanto para guardar no banco, o amor da vida pode ter ficado na sombra pelo caminho. Ao se fixar atentamente ao relacionamento que pode dar certo pode acontecer que a sombra cubra o outro que está nesse relacionamento.
Não há nada de errado em ter objetivos e buscá-los diariamente, colocar pontos de luz na vida que possam alimentar a alma durante os períodos difíceis. Mas estes pontos devem irradiar claridade para todo o restante da vida e não cegar. Seria interessante pensar se não são os seus filhos que estão à sombra da luz que você observa no fim do túnel.


Rosemiro A. Sefstrom

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Você deveria mudar!

No consultório de um filósofo de vez em quando aparecem pessoas que querem mudar, achando que o seu modo de viver é errado. Estas pessoas entendem que a maneira como vivem ou agem diante das situações da vida está errada  e por isso precisam mudar. No entanto, não raras vezes, depois que o filósofo colhe os dados da historicidade da pessoa descobre que não há nada de errado. Na verdade o que acontece é que o pai, a mãe, o tio, um amigo, uma pessoa que a encontrou em um curso de final de semana, lhe disse que ela estava equivocada no seu jeito de ser. Ao ouvir a sentença do outro sobre seu jeito de ser, a pessoa entende que seria ideal mudar, pois ela não quer estar errada se há um jeito certo.
Em Filosofia Clínica, um dos princípios básicos é a singularidade, ou seja, para um filósofo clínico cada pessoa é única. Por isso, ao receber uma pessoa em seu consultório ele nada mais sabe do que aquilo que se apresenta em sua frente, se a pessoa é alta, baixa, magra, gorda, loira, morena, enfim. Esse entendimento faz com que o terapeuta filosófico olhe para cada pessoa como um fenômeno único, que jamais se repetirá, ou seja, é singular. Com base nesse princípio, quando ele ouve uma pessoa, entende que seu modo de ser é assim por uma série de razões, que muitas vezes a própria razão desconhece.
Mas, para muitas pessoas acostumadas a verem a novela das sete, os filmes de Hollywod, A Fazenda, Big Brother, para estas existe um padrão social do qual todos são reféns e têm de se adaptar. Por isso escutam-se muitas vezes cursos e livros anunciando, por exemplo, “receita para uma mulher poderosa”, onde existe uma lista de predicados necessários a uma mulher para fazê-la poderosa. No entanto estes textos deixam de lado a singularidade, levam em conta um padrão, um modelo estereotipado de mulher poderosa. Imagine você, o que seria uma mulher poderosa: pode ser que seja uma mulher alta, curvilínea, imponente, sedutora, falante, expressiva, será que essa é uma mulher poderosa? Pode ser que seja apenas uma fachada escondendo uma mulher tímida que sofre muito pode ter de fazer de conta ser alguém que não é.
De acordo com a história de vida de cada pessoa pode-se ver que algumas mulheres são tímidas porque aprenderam que homens gostam de mulheres mais recatadas. E, do seu jeito aprenderam a lidar com sua timidez, dominam o lar, o marido e os filhos, mesmo com a timidez. É básico em Filosofia Clínica e até mesmo para a vida entender que, em cada contexto características peculiares podem ou não ser bem vindas. Imagine que essa mulher tímida, pouco expressiva, quase invisível se torne uma mulher poderosa, faça um curso que mude a sua vida. Agora ela é uma mulher poderosa, mas uma péssima mãe, deixa o marido de lado, perde os valores do casamento e assim por diante. O poder que ela acumulou de um lado, fez dela uma mulher fraca de outro, o que era para ser uma qualidade acabou por se mostrar seu mais novo defeito.
Mas, não se pode dizer que não se deve mudar, claro que se pode mudar, mas ao fazer isso, cuidar para que você se torne cada vez mais você mesmo. Para isso invista naquilo que é seu, que faz parte de você, deixe de pensar que o jeito do outro é o correto ou melhor. Quando alguém lhe recomendar que você deve mudar, antes de mais nada, veja se essa pessoa é um bom exemplo naquilo que diz. Mais ainda, veja se o seu estilo de vida combinaria com o dela ou se a sua história de vida é igual a dela. Provavelmente cada um tem sua história, seu jeito de ser, sua singularidade e se precisa mudar, não é para ser um marionete social.

Rosemiro A. Sefstrom

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Espanto

Espanto é a palavra base de toda a atividade filosófica, não há como ser filósofo se não houver a capacidade de se espantar.  Espantar-se é tomar algo como novidade, algo que chame a atenção a ponto de tirar o foco de qualquer outra coisa. Em outras palavras, espantar-se é ser surpreendido. Neste artigo conto duas situações que chamam a atenção pela simplicidade e banalidade como são normalmente vistas. A primeira situação ocorreu quando a mãe de um menino de cinco anos foi a uma reunião de professores na escola de seu filho. Ao longo da reunião a mãe ouviu o seguinte: “Nossa, como seu filho é ingênuo! Ele não tem maldade, os outros meninos já paqueram as meninas e ele não”. A mãe ficou espantada, pois de acordo com sua educação era justamente assim que deveria se comportar um menino de cinco anos, ou seja, brincar de carrinho, viver a inocência da infância e não pensar em namorar. A segunda situação aconteceu no dia em que a mãe foi buscar o filho na escola. Na saída da escola o filho vinha contente pois havia recebido um pirulito da professora, mas ao abrir a mochila não o encontrou. Falou para a mãe: “Mãe eu ganhei um pirulito da professora, mas não está aqui”. Com o auxilio da mãe revistaram a mochila, sendo que o bolso da mochila onde o menino disse ter colocado estava aberto e seu pirulito não estava lá. A mãe perguntou: “Mas tem certeza que você não perdeu?”. Diz o menino: “Não, eu o coloquei aqui e fechei o reco”. A mãe conclui: “Então alguém deve ter pegado o pirulito da sua mochila”. O menino retruca: “Mas mãe, cada um ganhou um pirulito”.
Em boa parte das casas isso é absolutamente normal, com cinco anos o filho já está interessado em meninas e sabe que pode ser roubado. De acordo com a visão de mundo dos pais este é o mundo onde o filho está sendo inserido e se não for preparado passará por bobo. Na visão destes pais os valores a serem seguidos estão estampados nas revistas, jornais, novelas. As crianças desde cedo são “adultizadas” sexualmente e os adultos são infantilizados moral e legalmente. Não é mais espantoso um menino de cinco anos tendo interesse sexual pelas coleguinhas da escola, é tão normal que algumas vezes perguntam a ele quem é sua namoradinha. Também é visto com normalidade jovens se apropriarem do que não é seu, matarem, depredarem propriedades públicas com a certeza de que nada lhes acontecerá. Como não se espantar?
Aos que leram até aqui e pensaram consigo que estamos perdendo os valores, afirmo: não, não estamos. O que está acontecendo é que estamos mudando nossos valores, como sempre estivemos, deixando os valores de nossos avós, de nossos pais e assumindo os nossos. Infelizmente ou felizmente cada geração é julgada pela geração futura pelos seus valores. Algumas gerações duraram milênios por cultivarem valores sólidos e outras pereceram. Se olharmos para o oriente, povos de culturas milenares, costumes há muito chamados de arcaicos resistem ao tempo e são exemplos em muitos quesitos.
Um bom exemplo está na Índia, povo dominado pelos ingleses que seria explorado como tantas outras colônias pelo mundo. Como modo de expulsar seu invasor os indianos simplesmente se recusaram a abandonar sua cultura, resistiram basicamente fazendo o que sempre fizeram, sendo indianos. A resistência pacífica de Ghandi se baseou na luta pela preservação dos costumes de seu povo. A Índia tem problemas sérios hoje causados justamente pela introdução dos costumes ocidentais, uma cultura milenar que lentamente está sendo desconstruída. Estão perdendo seus valores? Sim, diriam os antigos. Não, dizem os contemporâneos. Valores antigos ou novos serão necessários para no futuro verificar-se o que foi feito de errado no passado.

Rosemiro A. Sefstrom

terça-feira, 22 de abril de 2014

Liberdade, o que é?

Na história da humanidade não é difícil de encontrar passagens que relatam a luta de povos, pessoas por liberdade. Mas o que seria a liberdade? Para responder a esta pergunta estamos na dependência do raciocínio que resolvermos desenvolver. Existe uma parte da filosofia que acredita que o ser humano é determinado segundo fatores alheios a ele. Segundo esse pensamento não temos escolha, somos apenas resultado de um conjunto de fatores que nos trouxeram até este momento. Esse pensamento já esteve revestido de conteúdo religioso e ainda hoje é muito forte em determinados meios. Na religião esse tipo de crença se justifica ao afirmar que Deus já conhece nos passos e que estamos onde deveríamos estar, destino.
O pensamento determinista afirma que os ser humano não tem escolhas, mas é apenas fruto da relação de causa e efeito. No entanto os que acreditam na liberdade afirmam que os ser humano é o único ser capaz de tomar conhecimento das causas que agem sobre ele e elaborar um plano de ação para realizar a transformação. Para estes o ser humano é fruto e resultado de suas escolhas frente às situações dadas. Um bom exemplo desta postura é o filme Matrix, onde Neo, o personagem principal, avalia as situações e elabora seu plano de ação. Enquanto as máquinas, o seu oponente, não têm a liberdade da escolha, mas seguem o resultado de uma equação matemática.
Toda essa explicação é bastante teórica e longe do dilema diário sobre o que é realmente a liberdade para cada um. Se voltássemos no tempo e pegássemos o Brasil Colônia e perguntássemos às pessoas que viviam naquela época sobre liberdade? Muito provavelmente a elite brasileira diria que liberdade é decidir questões políticas sem depender de Portugal. Os comerciantes diriam que liberdade é poder vender os produtos a quem quisessem e não necessariamente á coroa portuguesa. Os escravos diriam que liberdade é não ser propriedade de outra pessoa, ou seja, decidir a respeito de si próprio. E hoje, o que é liberdade para você?
Pelo Oriente Médio explodem conflitos armados onde a população briga por mais direitos, segundo alguns jornais, por mais liberdade. Será que esse povo sabe pelo que está lutando? Será que as pessoas nas ruas daqueles países sabem exatamente o que querem. Não é raro encontrar pessoas que passaram a vida buscando determinadas coisas e quando chegaram lá perceberam que era justamente o que não queriam. Se perguntarmos a esses povos que lutam contra seus ditadores o que é liberdade, será que saberiam responder?
Em Filosofia Clínica o entendimento de uma situação assim pode ser dada segundo a história de cada um dos povos. Mesmo com características comuns cada um deles conta com uma história e esta precisar ser respeitada. Precisamos saber quais são os Assuntos Imediatos e Últimos destas revoltas, saber o que levou a este momento, mas sobre tudo o que realmente precisa ser trabalhado. Não são raros os momentos na história que muitas coisas mudaram para que pudessem permanecer exatamente as mesmas.
Rosemiro A. Sefstrom

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Unidos somos diferentes?

Uma antiga história fala da união de pessoas em torno de um mesmo objetivo é a “história dos gravetos”, ou qualquer outro nome que possa ter ganhado ao longo do tempo. A história conta que um pai muito rico, com muitas propriedades e já à beira da morte chama seus filhos. Ao chegar os filhos o homem lhes diz: “Deixarei tudo o que tenho com apenas um de vocês, basta que pegue aquele feixe de lenha que está atrás da porta e o quebre”. Cada um dos filhos tentou com muito vigor, mas nenhum conseguiu quebrar o feixe de lenha, por mais força que fizesse. Então, o pai, vendo os filhos fazerem força pediu: “Dêem-me o feixe e eu mesmo o quebrarei”. Os filhos, espantados, entregaram-no ao pai que foi retirando um a um os gravetos do feixe e quebrando, até não restar mais gravetos a serem quebrado. A moral desta história é sobre a necessidade de estarem unidos para garantir a força e a estabilidade do trabalho. As versões são muitas, assim como os autores.
Na Filosofia Clínica tenho escutado constantemente uma pergunta: “Por que algumas pessoas mudam tanto quando estão dentro de um grupo?” Como exemplo, citam pessoas que são devagar, quase parando, e que ao se juntarem a outras pessoas assumem atitudes violentas. Pessoas que em grupo fazem qualquer tipo de ato sem um mínimo de reflexão, algumas vezes passam de submissos a comandantes de atos sem precedentes.  Um filme baseado em fatos reais, no caso “O experimento da prisão de Stanford” em 1971, retrata bem o que temos acima. Lembramos que o experimento foi cancelado antes que houvesse violência física, mas o filme “The Experiment” de 2010, uma refilmagem do alemão “Das Experiment” de 2001, apresenta a visão de como seria se não tivesse sido interrompido o experimento. Voltando ao assunto, durante o experimento um homem pacato, religioso que morava com a mãe se torna um dos monstros do projeto. De fiel religioso a um violento comandante dos guardas da prisão, por que?
Algumas pessoas enquanto Estrutura de Pensamento solitárias têm ativas em si alguns tópicos, os quais a levam em uma direção. No entanto, quando estão em Interseção de EPs, ou seja, quando estão com outras pessoas fazem uso do conteúdo de outros tópicos de sua Estrutura de Pensamento. Assim, um homem ou mulher quando está sozinho pode ser orientado pelo que acha de si mesmo, pela visão que tem do mundo ou até mesmo pelas emoções. Mas quando se junto com mais algumas pessoas pode colocar em funcionamento seu pré-juízo de que é um enviado de Deus. Assim, de pacífico cidadão, se torna o guia de algumas centenas de pessoas que fazem do que ele diz um motivo para a violência contra outros e contra si mesmos. Algumas pessoas nesses momentos fazem uso de agendamentos feitos pelos pais: “Não leve desaforo para casa”. E essa calma pessoa, estimulada pela embriaguez e pelos ditos, fazendo uso de uma arma não leva desaforo para casa. Um exemplo para os amantes de motocicleta e rock n’ roll são os Hell’s Angels da década de 60, os quais, quando se juntavam tornavam-se violentos e mortais.
As ilustrações acima não têm objetivo de dizer que é assim, mas pode ser assim. Sendo muito mais simples, posso dizer que algumas pessoas são completamente diferentes quando estão em contato com outras. Como o menino, metido a machão, que se torna um doce e leva todo desaforo para casa quando está em contato com a menina que gosta. A grande diferença se dá porque algumas pessoas quando estão em Interseção de Estrutura de Pensamento mudam os tópicos pelos quais são tomadas as decisões. E assim se tornam pessoas tão diferentes de si próprias em nesses momentos que são praticamente irreconhecíveis.

Rosemiro A. Sefstrom

quarta-feira, 16 de abril de 2014

“Puro sangue, puxando carroça”

A música “Dom Quixote” composta por Humberto Gessinger e Paulo Galvão canta a vida de uma pessoa que se dedica às causas perdidas. Ao longo da música vários trechos citam a forma inadequada como são aproveitados conhecimentos e recursos. Logo na primeira estrofe aparece a expressão “puro sangue, puxando carroça”, em outra parte diz ainda “grandes negócios, pequeno empresário”. Esses dois trechos, entre outros que possui a letra da música, retratam muitos casos onde se tem um recurso inestimável e o mesmo não é utilizado de forma adequada. Em cada pessoa há uma profunda e inestimável fonte de recursos, recursos que podem fazer a própria vida e de outras pessoas muito melhor.
Se alguém perguntasse a você, quais são seus potenciais e quantos deles você desenvolveu, o que responderia? Algumas pessoas têm muito potencial na área esportiva, mas abdicam de investir nesse potencial pela segurança financeira. Em muitos casos essa decisão custará uma vida inteira sem sentido, dias intermináveis dentro de um escritório e noites longas de insônia. Em outros casos ocorre o contrário: grandes oportunidades aparecem para pessoas que não sabem aproveitá-las, como diziam os antigos: “às vezes Deus dá asas para quem não sabe voar”. Esta é, na verdade, uma frase incompleta, pois Deus deu asas, mas a pessoa não aprendeu a voar. São os “grandes negócios para pequenos empresários”, como as empresas que sofrem da “síndrome do milhão”, que crescem até a capacidade de gerenciamento do proprietário.
Muitos professores em salas de aula, nos dias de hoje, podem sentir-se verdadeiros “puro sangue puxando carroça”. Imagine um professor com vinte e sete anos de idade, dos quais passou ao menos vinte em sala de aula, com uma experiência acadêmica e conhecimentos espetaculares. Esse professor está em uma sala de aula pré-histórica, com uma pedra riscando em outra (quando muito tem o quadro branco e canetão), numa sala de aula em que até o momento havia trinta alunos e que agora querem passar para quarenta por sala. A questão é: como um puro sangue vai ser aproveitado numa carroça? Na educação particular não é muito diferente, o professor é servo, tratado quase como empregado do aluno, o pai muitas vezes é conivente com a má educação dos filhos e a escola, refém do pagamento da mensalidade. Neste caso o “puro sangue” tem uma boa estrutura, mas está amarrado a falta interesse ou ao interesse exagerado em notas.
Muitas vezes esse “puro sangue” somos nós, puxando uma carroça ou carregando uma cangalha como um burro de carga. Em Filosofia Clínica, com um bom exame da história de vida da pessoa e todo o restante do trabalho é possível tirar o “puro sangue” da carroça, fazê-lo deixar o peso da cangalha. Para muitos é cômodo sentar em frente do computador e fazer um trabalho repetitivo, ganhar seu dinheiro e fazer cara de feliz, mesmo morrendo por dentro. Para muitos toda a imagem, toda essa exposição é como “aerodinâmica num tanque de guerra, vaidades que um dia a terra há de comer”. Não tem nada de mais em ser o que os outros esperam, viver o que os outros vivem, comer o que os outros comem, mas tem de se aceitar o preço disso.
Um “puro sangue” às vezes não se percebe, precisa ser percebido, não se vê, precisa ser visto. Muitos grandes empresários têm empresas de sucesso porque aprenderam a ver um “puro sangue” e investir nele. Muitas vezes o discípulo irá muito mais longe que o mestre, algumas vezes o empresário percebe que está apenas mostrando o caminho. São grandes os empresários que identificam e aproveitam o potencial de um “puro sangue”.

Rosemiro A. Sefstrom

terça-feira, 15 de abril de 2014

Qual o tamanho do pavio?

Uma das alegorias mais comuns sobre o temperamento das pessoas é o pavio. Às pessoas que tem paciência e agüentam grande carga de problemas sem reclamar ou “explodir” com outras pessoas, são chamadas de pavio longo. Já aquelas pessoas que por pouco, quase nada “explodem” com quem estiver por perto, recebem o termo “pavio curto”. Esse processo de encher acontece com pessoas que usam o procedimento que chamamos de adição, ou seja, elas somam o que acontece durante o dia.
A adição, ou processo de soma, pode acontecer de muitas maneiras, uma delas é a adição de coisas ruins. É fácil sentar em um banco pela cidade e ficar meia hora ouvindo as conversas e perceber que algumas pessoas contam muitos eventos ruins. Algumas pessoas ouvem estas informações dos jornais, por exemplo, e esquecem logo em seguida. Mas muitos dos que ouvem podem fazer o processo aditivo, somar um assassinato, com um assalto, com uma briga, com o aumento da gasolina, com a inflação e tudo o que fizer parte da conversa. Essa pessoa provavelmente terá muito conteúdo ruim para trabalhar, uma vez que adicionou tudo que lhe foi dado. Muitas pessoas têm o hábito de adicionar o que é ruim, e as coisas boas que passam perto sequer são identificadas.
Coloquemos este processo aditivo em uma relação de marido e mulher. Imagine que sua esposa faz o processo de adição, mas é um processo muito curto, em alguns dias ela se incomoda com as coisas e logo briga, chora, grita. Você, com o tempo acostuma e a cada tanto ela faz esse processo, mas logo depois tudo volta ao normal, à rotina. No entanto, o marido faz um processo aditivo muito mais longo, leva algum tempo, um , dois, dez anos até atingir o limite e explodir. Quando a explosão acontece é algo tão fora da realidade da esposa, que nunca viu tal evento que ela pode significar como falta de amor.
A explosão se refere ao momento em que a pessoa chegou ao seu limite e termina por colocar toda sua insatisfação para fora. Utilizei o termo explosão por ser um comportamento geralmente descontrolado, no qual a pessoa grita, bate, chora, algumas vezes simplesmente desmaia.  É importante perceber que em muitos casos a explosão acontece com quem nada tem a ver com o ocorrido. Como a esposa que espera o marido em casa, depois de um dia cansativo, o marido chega em casa e percebe algo que lhe desagrada. Naquele momento ele explode, diz coisas que jamais diria se não fosse naquelas condições.
O conteúdo da explosão em muitos casos em nada tem a ver com o que aconteceu no momento, uma vez que a pessoa adiciona elementos diferentes. Quem acompanha este processo, deve entender que pode não ter a ver com o que está acontecendo e que a pessoa está simplesmente descarregando de forma bruta. O conteúdo elaborado, bonitinho, socialmente correto, nessas horas fica de lado. Pode não ser fácil, mas seria ideal se houvesse a compreensão por parte de quem acompanha a explosão que percebesse que pode não ter a ver com o acontecido. Mas que a pessoa precisa jogar todo aquele lixo que guardou para fora.
O tamanho do pavio de cada um tem a ver com quanto conteúdo é possível de se adicionar. Para algumas pessoas o processo de adição e nada é a mesma coisa, elas esquecem, simplesmente deixam para trás e seguem seu caminho. Mas as pessoas que o fazem vivem sob a pena de catalogar e alocar cada conteúdo vivido. Aqueles que convivem com estas pessoas devem prestar atenção ao processo e perceber que tipo de conteúdo é adicionado e como isso acontece. Basta prestar atenção às expressões como: “Outra vez; de novo; mais um dia; está me enchendo; parece que vou explodir.” E tantas outras expressões que denotam a operação de soma.

Rosemiro A. Sefstrom

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Eu sou o meu paradigma!

É difícil quem ainda não ouviu falar da palavra “paradigma”, principalmente se estiver na área acadêmica. Ela se tornou moda na década de noventa, e em muitos lugares continua sendo muito utilizada. Paradigma é uma palavra que designa modelo. Um modelo é uma representação a ser seguida, ou seja, uma visão de mundo que servirá de modelo. Inicialmente, a palavra paradigma era utilizada apenas para designar um modelo no que diz respeito à gramática. O uso se dava no sentido de mostrar uma relação específica estrutural entre os elementos da linguagem. Isso segundo Ferdinand de Suassure.
Mas a visão que mais me chamou atenção a respeito do que quer dizer paradigma foi a visão de Thomas Kuhn, filósofo estadunidense. Diferente de Suassure, Kuhn utilizou o termo paradigma, com uma nova definição, para designar o trabalho da ciência na produção do conhecimento. Para o filósofo, o termo descreve um modelo elaborado a partir de uma série de pesquisas e debates que servem mais como uma forma de criar escolas do que de resolver as questões. O modelo de visão paradigmático elaborado por cada escola se apresenta como uma possibilidade de ver e também de entender os problemas do mundo. Um paradigma, então, não é uma possibilidade de resolução de um problema, mas um novo modelo de estruturar o problema.
Ao longo da história da humanidade, cada instituição procurou elaborar um modelo estrutural de homem, e a partir deste modelo elaborou as suas questões. O modelo de homem elaborado pela religião é de que ele é filho de Deus e por isso deve se direcionar a Deus para encontrar a salvação de sua alma. Na ciência, o homem é um corpo e deve cuidar deste de maneira que possa viver mais e melhor. Já a psicologia entende o homem como um ser dotado de uma psique e esta tem um modelo que pode diferenciar o normal do doentio. Não é de estranhar que um médico, o qual cuida do corpo, pense que todos os males sejam de origem física, este é o modelo que ele tem. O mesmo serve para cada uma das áreas. Vale lembrar Pitágoras, para quem tudo era número.
Segundo Thomas Kuhn, as ciências elaboram paradigmas para as máquinas, para o mundo e, a partir deles estudam os problemas. Para as coisas, talvez um modelo possa ajudar na compreensão, mas como entender o ser humano a partir de um modelo? Pense em você mesmo: se você escrevesse um livro dizendo como é o ser humano, o que é certo, errado, bom, mau, como seria este livro? É interessante pensar nisso, pois geralmente ouvimos um autor, filósofos ou marqueteiros falando e apenas pela forma eloquente com a qual ele fala, acreditamos realmente que ele está certo.
Imagine se homens como Rousseau tivessem razão: para ele,  o homem é bom e a sociedade o corrompe. Quem leu seu livro percebe que ele é muito convincente. Posso também citar como exemplo Thomas Hobbes, para quem “o homem é o lobo do homem”. Há um mais antigo, Sócrates, para o qual o homem só fazia coisas erradas porque não sabia que era errado.
Proponho uma visão diferente, onde eu seja o paradigma de mim mesmo. Na Filosofia Clínica eu construo o paradigma do outro por ele mesmo, através de sua história de vida. Não há bom ou mau, certo ou errado, mas uma série de conteúdos e movimentos que formam o paradigma que cada um é em si mesmo. Eu sou o meu paradigma.

Rosemiro A. Sefstrom

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Arapuca

Numa conversa com um amigo fiquei sabendo de um artigo escrito por Eliane Brum que tem por título “Meu filho... você não merece nada!!!” É um texto interessante e realmente recomendo a leitura. No texto a autora começa por mostrar como os pais criaram armadilhas nas quais eles mesmos estão ficando presos. São uma geração de pais ( nem todos) que criam os filhos com tudo o que eles não tiveram, inclusive a falta de educação, juízo de valor, senso de coletividade, vontade de vencer. Enfim, como diz a Elaine Brum, “nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito”. Essa ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito faz com que, cada vez mais, os pais se tornem refém da felicidade dos filhos.
É provável que você já tenha ouvido a expressão: “Vou dar ao meu filho o que o meu pai não pode me dar”. Essa expressão não é de todo ruim, em muitos casos o pai não dava carinho, atenção, amor, educação, orientação, mas em geral essa afirmação está relacionada apenas com bens materiais. São pais que atingiram uma posição social cômoda e que têm para dar aos filhos “o que os pais não tinham para dar” desconsiderando que muitos filhos, que eles mesmos criam, são como poços sem fundo: quanto mais os pais derem, mais terão que dar. No dia em que o pai não tem mais como oferecer aquele manancial de coisas à criança, jovem e muitos adultos, os filhos voltam-se contra os pais porque eles têm o direito de ter o que querem. O pai e a mãe podem estranhar, mas foi exatamente o que eles ensinaram aos filhos a vida toda: que eles iriam ter tudo. A armadilha que muitos pais estão se metendo é fruto de uma visão míope, onde ter conforto pode significar viver melhor.
Muitos destes pais, no entanto, esqueceram até rápido demais que quando pequenos a falta do que comer lhes fez buscar. Muitos não lembram que a ausência dos bens não significou a ausência do pai, da orientação, da educação. Muitos pais de hoje em dia fazem o contrário: dão uma imensidão de coisas os filhos e se eximem de serem pais. O que espanta em muitos casos é a falta de uma visão sobre si mesmos como pais, de modo que se veem nas escolas mãe que dizem: “já não dou mais conta do meu filho”. Aí ficam os professores reféns de pais que não dão limites aos filhos, mas dão tênis caro, roupa cara, passeios caros.
Estes pais se tornam reféns do assalto dos filhos dentro do supermercado, onde gritam, esperneiam até que ganham o que querem. Tornam-se reféns da educação que deram aos filhos, pois não conseguem perceber que a arapuca na qual estão presos foi construída com muito zelo por eles mesmos. Em Filosofia Clínica essa prisão, amarra, chama-se Armadilha Conceitual, ou seja, um conceito que prende alguém. A Armadilha Conceitual do qual muitos pais se tornaram reféns foi o conceito de filho, crianças que perderam noções básicas ou tem visões distorcidas a respeito de si próprios e do mundo onde vivem.
Estar preso ao filho que criou pode ser falta de conhecimento, vontade, sabedoria, ajuda, enfim, pode ser muitas cosias. Mas, continuar prisioneiro de alguém que no futuro vai muito provavelmente acusar a você pelos prováveis insucessos é uma escolha. Existem pessoas, livros, vídeos, programas de televisão que sugerem formas de educação nas quais o filho não é uma arapuca, uma prisão, mas uma pessoa com quem se vai curtir a vida. Ter um filho companheiro, não credor, ter um filho amigo, não aliado político, ter um filho carinhoso, não interesseiro, é possível, mas é preciso que os pais saibam educar. Pense nisso: talvez muito do que você não teve fez de você quem você é.

Rosemiro A. Sefstrom

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Quem somos!

Em nossa vida, nem sempre somos os primeiros, nem precisamos ou até mesmo queremos ser. Assim acontece no consultório, lugar onde a vaidade de achar que se sabe alguma coisa sobre o homem, as pessoas, o ser, cai por terra trinta segundos depois de olhar para o outro. Quando olhamos no fundo dos olhos, não interessa a idade, sabemos que aqueles olhos, além de tudo que se possa dizer, nos trazem uma representação de mundo. Além dos olhos temos ainda todos os outros cinco sentidos, além daqueles que ainda não conhecemos, mas podemos conhecer na singularidade existencial. É no consultório e com este outro, diferente de mim, com quem vou construir uma caminhada, longa ou curta, tanto faz, mas uma caminhada que leve o outro à paradeiros por mim ainda desconhecidos.
Quando a pessoa senta-se diante de mim, numa sala de aula, numa conversa, no consultório, sei profundamente que não sei nada além daquilo que sei. Devo estar profundamente aberto, por meio dos olhos, ouvidos, olfato e todos os outros sentidos, para poder acompanhar a pessoa em sua caminhada. As minhas ferramentas, apenas teorias, quem me dá é o outro, pessoa da qual terei de tirar a experiência para poder vencer o caminho que ela me propôs quando começou a partilha comigo. A coragem, o ser destemido, nada além de boatos, sou como um ser qualquer, que tem medo, chora e erra, mas ao lado daquele outro preciso ser mais forte que ele ou ser mais fraco, para que ele seja forte.
Depois de um tempo caminhando juntos me sinto ambientado, acho até que posso perguntar algumas coisas, conhecer de maneira interessada o que ainda não está claro para mim. Mas mesmo quando pego e tomo a direção da conversa faço de maneira singela, simples, de acordo com a caminhada do outro. Com minhas perguntas conheço um pouco melhor os porquês, significados, lembranças, sentimentos, verdades, enfim, conheço um pouco melhor o caminho e a maneira de caminhar deste outro. Quando percebo que minhas perguntas causam dor, procuro parar e retomo o mesmo assunto por outras veredas, que causem menos sofrimento.
Caminhando junto aprendo a seguir o ritmo do outro, seu tempo. O meu de nada serve. De nada me adiantaria entrar no mundo do outro e caminhar à frente dele, pois não veria o que ele vê. Sigo seu passo, marco a passada e caminho junto, se possível respiro no mesmo ritmo, quem sabe assim sentirei como é estar no lugar dele. A cada paisagem que acompanho olho atentamente, não para o que gostaria de ver, mas para aquilo que o outro quer me mostrar. Olho o seu mundo pelos seus olhos, durante esta caminhada deixo meus olhos guardados para as minhas coisas.
Quando a caminhada já está avançada, conhecendo bem o caminho e o caminhante, com minhas ferramentas sugiro formas mais adequadas de se caminhar, ferramentas mais eficientes ou até mesmo eficazes para o trajeto que o outro caminha. Agora, com todo o percurso que percorremos juntos, sou tão próximo dele que algumas vezes posso retirar um obstáculo do caminho antes mesmo que ele escolha caminhar por aquela estrada.
Sei profundamente que não sou eu o ator principal nesta caminhada, e sim, o outro. Sou um coadjuvante, aquele que aparece bem no fundo das cenas. Não é para ser o primeiro, nem o último, mas é para estar sempre ao seu lado que sou o que sou e faço o que faço. Eu sou um Filósofo Clínico e trabalho com gente.

Rosemiro A. Sefstrom

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Maior parte de mim

Vivemos em um mundo que pode ser extremamente estimulante, podendo nos orientar nas mais variadas direções. Muitos de nós têm televisores em suas cozinhas e logo que acordamos já podemos ser levados a viver em São Paulo, Rio de Janeiro, sem sequer ter tomado café. Saindo de casa ligamos o cd do carro e acabamos nos deslocando ao tempo de nossa juventude, ouvindo músicas de quando íamos para a discoteca. Se preferirmos ouvir alguma rádio podemos nos surpreender longe, pensando em como será a eleição deste ano ou a copa do mundo. Numa conversa desinteressada com meu colega de trabalho posso viajar para os Estados Unidos e reviver minha última visita ao lugar, lembrar inclusive o desejo de voltar.  
Todos estes movimentos têm algo em comum: são movimentos que faço sem sair do lugar, são movimentos que se processam unicamente na minha mente. Esta capacidade de poder viajar sem sair do lugar que parece muito interessante, em muitos casos é um grande problema. É o caso das pessoas que se perdem do próprio corpo ao longo de sua história ou em casos episódicos. Alguns relatos peculiares mostram quando isso acontece: são exemplos os casos em que a pessoa toma banho e ao final não se lembra se lavou o cabelo ou passou hidratante. Semelhante é o caso das pessoas que saem de carro, seguem para algum lugar e ao chegar não se lembram do caminho. Nestes casos o corpo era a menor parte da pessoa, era apenas um veículo para a mente.
Quando a mente é a maior parte alguns fenômenos podem ser tornar comuns, como por exemplo, estar sempre acelerado. Imagine que você está tomando banho, logo que acordou, mas não sente o banho, na verdade já está indo para o trabalho, pensando no trânsito, na chegada ao trabalho e naquela conversa com o gestor. Outro fenômeno ainda é perda de medidas, pois o pensamento pode rapidamente se deslocar, seu corpo nem tanto. Por exemplo, quando você está a 140 km/h e ainda se percebe lento. Pode por vezes perder a medida dos alimentos, pois como não sente o gosto ou se sacia come em demasia, com muito tempero. Em outros casos ainda a pessoa perde a noção do tempo, ou seja, fica alguns minutos em algum lugar e tem a impressão de ter passado horas, assim como pode ter ficado muito tempo e achar que se passaram alguns minutos.
O retorno ao corpo pode ser feito de diversas formas e em cada um acontece de maneira diferente. Algumas pessoas somente conseguem retornar ao corpo quando entram em contato com a natureza, são aquelas que precisam de um final de semana no sítio, cercados de mata, pássaros, sons da natureza. Outras pessoas precisam fazer um curso de degustação de vinhos, onde o foco sensorial é extremamente necessário. São vários os casos em que a pessoa para fazer o retorno ao próprio corpo precisa fazer um curso de culinária, cheirar os temperos, sentir o gosto dos molhos. Outra sugestão são trabalhos manuais;várias pessoas voltam ao corpo quando fazem trabalhos com argila, escultura, pintura, origami. Voltar ao corpo é vivê-lo à sua maneira, não há duas experiências de vida de corporeidade iguais, meu corpo é vivido do meu jeito.
Tornar meu corpo a maior parte de mim faz com que seja possível viver os prazeres do corpo de modo completo e não apenas protocolar. Tomar um bom vinho se faz com os sentidos e não com o pensamento, vinho bebido com o pensamento não tem gosto, tem reflexão. Viver o corpo pode nos libertar dos nossos próprios pensamentos.

Rosemiro A. Sefstrom

terça-feira, 8 de abril de 2014

Ser - Humano

Há em filosofia alguns termos ou formas de se abordar as relações. Tais termos foram trabalhados nos últimos artigos. O tema das relações está presente em nosso cotidiano, reforçado por determinadas notícias que se espalham pela televisão, internet e outros veículos de comunicação. Sendo assim, acredito ser pertinente, por exemplo, a notícia que apareceu hoje, terça-feira, dia 07 de fevereiro de 2012, referente à troca de casais que está ocorrendo num programa de televisão. Parece que aos poucos a relação entre uma pessoa e outra pessoa está se tornando uma relação entre uma pessoa e um objeto. É interessante observar que este comportamento não se vê só lá na televisão, também se vê no dia-a-dia, em casa, na escola, no trabalho, etc.
Nos artigos anteriores, talvez a linguagem usada, por se tratar de filosofia, tenha ficado um tanto inacessível. No presente artigo, usarei argumentações muito simples. Em Filosofia Clínica, há um termo chamado Interseção de Estruturas de Pensamento, ou seja, a relação que se dá entre dois seres vivos, a relação que se dá como troca. A Interseção de Estruturas de Pensamento supõe que eu entre em contato com o outro na medida em que ele entra em contato comigo, o outro pode ser uma pessoa ou mesmo meu animal de estimação. O outro na interseção é alguém que, como eu, contribui na relação e não é objeto dela. Uma interseção de EP, como é mais comumente conhecida, pode ser positiva, negativa, variável ou indefinida.
Desenvolver uma interseção, ou seja, amarrar laços com outra pessoa é se colocar e receber o outro num espaço de construção coletiva. Esse espaço normalmente não depende somente de uma das partes, mas das duas partes. Se, pela manhã você vai até a padaria comprar pães e é gentil com o vizinho que mora duas casas além da sua na direção da padaria, será que lhe será grosseiro? Ainda que ele o seja, a parte para a construção de uma interseção positiva partiu de você. Uma relação agradável na qual tanto eu quanto o outro estejam bem é uma interseção positiva.
Quanto você sai nervoso pela manhã, entra em seu carro e se transforma, fica grosseiro, mal educado, será recebido com gentileza? Neste exemplo, caso a interseção ocorra de maneira negativa, partiu de você. Este tipo de interseção se dá quando uma ou as duas partes não se sentem bem na relação.
Uma relação na qual você está com a pessoa e hora está bem, hora está mal, tanto para você quanto para ela, é uma interseção variável. E há ainda interseções que acontecem e que não se pode dizer se são positivas ou negativas, sendo caracterizadas provavelmente por indefinidas.
Mas veja, em todo o caso, as interseções se dão entre seres com vontade própria, com arbítrio sobre suas ações, pelo menos até certo ponto. Em se tratando de pessoas, não é você e nem ele o culpado, mas vocês. Mas, e numa relação com objetos inanimados, quem é o culpado quando o objeto estraga? Quem é o culpado pelo mal uso de um objeto? Diferente de uma interseção, onde você e o outro têm vida, numa relação em que você coloca o outro como algo separado, este outro se tornou objeto. Você, por si mesmo, pode se fazer objeto quando não entrar em interseção consigo mesmo como pessoa.
Ser: uma palavra que define movimento, indica o que cada um é agora, mas isto a partir de si mesmo e do outro. Uma interseção, ou seja, uma relação entre dois seres deve ser construída num espaço comum aos dois seres. Relacionar-se com coisas é se colocar acima delas, ter o poder de fazer nascer e morrer, talvez. O entendimento de que você não é objeto e o outro não é objeto deveria fazê-lo compreender que a sua vida está diretamente ligada a do outro, seja ele quem for.

Rosemiro A. Sefstrom

segunda-feira, 7 de abril de 2014

É mesmo!

A expressão do título do presente artigo é muito utilizada quando conversamos com outra pessoa e concordamos com ela. Geralmente ela é utilizada para dizer que estamos de acordo com o que o outro diz. É como e eu lhe dissesse: “O dia está lindo hoje!”, e você, para dar continuidade sem se estender pode dizer: “É mesmo!” Veja, ao concordar comigo você torna parte de você a minha afirmação, ou seja, como se fosse você mesmo que tivesse dito que o dia está lindo. Do mesmo modo funciona para todas as outras coisas, segundo Emmanuel Levinas. Quando você olha uma bela paisagem e fica com aquela imagem em sua mente, a partir daquele momento ela já não é mais ela mesma, paisagem, agora é você.
Este “é”, uma pequena palavrinha do verbo “ser” designa algo no seu estado atual. Assim, quando se diz que algo é, está se falando da atualidade. Mas, muito mais do que isso, se fala de uma longa discussão filosófica em torno do ser. Essa discussão acontece porque boa parte dos filósofos que já passaram por sobre a terra se dedicaram a entender ou definir o que é o ser. Muitas pessoas já se perguntaram: “Quem sou?” Os filósofos se perguntam: “Quem somos?” Para se perguntar sobre isso eles falam em ser, ou seja, quem é o ser.  Eu, você, seus filhos e tudo o que existe é ser, porque está, de alguma forma, sendo. Assim, aquele pequeno pedaço de um galho de árvore que se desprende e cai ao chão “é” graveto.
Diferente de um graveto que por acidente se torna graveto ao se desprender de um galho maior, nós podemos decidir, até certo ponto, o que somos. Você ao sentar em algum canto e ler este pequeno ensaio é um leitor, não por um acidente qualquer, mas por escolha. Aí é que vem uma das grandes contribuições de Heidegger, pois segundo ele o verbo ser não diz de uma coisa parada, mas de algo em contínuo movimento. Então o “é” da filosofia quer dizer, pelas mãos de Heidegger, “estar sendo”. Como você, que ainda lê, está sendo um leitor.
Este contínuo movimento do ser ou, como dito anteriormente, esse “estar sendo” que o filósofo diz abre uma profunda lacuna filosófica. Até o momento, muitos filósofos acreditavam nesse ser que “é”, ou seja, algo parado, estático, sendo assim de fácil apreensão e compreensão. Por isso criaram uma área da Filosofia chamada de ontologia, que se dedica a estudar o ser, tentar circunscrevê-lo. Mas, um filósofo chamado Emmanuel Levinas pega a ideia de Heiddeger e avança, dizendo que esse movimento do galho que se transforma em graveto e do trabalhador em leitor é que esconde o caminho para a origem do ser.
Para Levinas o “é mesmo” é o movimento que leva os conteúdos de fora para dentro. Esta expressão é a prova de que quando você, ao concordar comigo tornou seu tudo o que escrevi até aqui. Pode-se dizer que o é mesmo é a prova de que tudo o que estiver fora pode se tornar parte de mim. Esse movimento que leva os conteúdos de fora para dentro também pode trazer os conteúdos para fora, ou seja, o ser, seu ser. Eis o ponto mais difícil, porque é neste momento que Levinas vai mostrar que eu, você e qualquer outro ser somos inatingíveis. Somos inatingíveis porque o nosso ser está muito mais longe do que aparece. Você pode ser e é muito mais do que uma imagem refletida no mundo. É mesmo!

Rosemiro A. Sefstrom

sexta-feira, 4 de abril de 2014

O melhor!

Recentemente houve uma confraternização de formatura de uma turma de formação em Filosofia Clínica. Neste tipo de evento é costume apresentar aos colegas o melhor aluno. Dias antes da formatura, a pessoa responsável pelo curso pediu ao professor que colocasse dentro de um envelope o nome do melhor aluno para que o mesmo fosse homenageado. O envelope seria aberto no dia da formatura, ou seja, até mesmo a pessoa que conduziria o evento não saberia o nome do melhor aluno. Durante a cerimônia, a mestre pediu o envelope do professor para revelar diante de todos o nome do contemplado. Ela olhou para o envelope e depois olhou para o professor, o qual abanou com a cabeça certificando o que estava escrito. Assim, um a um ela falou o nome de todos os alunos da turma e, por fim, a mensagem: “Em Filosofia Clínica não existem melhores ou piores, cada um à sua maneira, foi o melhor. Foi o melhor em participação, foi o melhor em presença, foi o melhor em comportamento, foi o melhor em aproveitamento. Não há medida igual para duas pessoas, como disse Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas". Assim, cada um com sua medida foi nosso melhor aluno”.
Antes de ler foi pedido que cada aluno, quando chamado, ficasse de pé para receber a homenagem dos colegas. Assim, iniciando pelo primeiro nome, cada um dos alunos foi chamado. O primeiro nome causou espanto, também o segundo, mas do terceiro em diante os alunos entenderam a mensagem. Perceberam que ao longo de um ano de caminhada juntos o professor prestou atenção em cada um, percebeu seus potenciais e soube aproveitá-los. As metas estabelecidas, os padrões, os critérios de avaliação são quantificadores, não qualificadores. Infelizmente nos dias atuais para qualificar primeiro se quantifica, uma pessoa é boa quando mais dinheiro ela tem, uma pessoa é capacitada quando mais cursos ela tem. É uma lista infindável de quantificações para poder qualificar uma pessoa.
Eu sou o melhor, você é o melhor, seu filho é o melhor, sua esposa é a melhor, se pensarmos a partir das capacidades e limitações deles e nossas. Medir por comparação, estabelecer critérios cada vez mais rígidos de medição para poder qualificar uma pessoa, absurdo! Seu filho, com dificuldades de aprendizagem para matemática pode não ter essa acuidade, assim como você também não teve, mas não é porque os outros têm, que ele tem que ter. “Se não tem nenhuma limitação orgânica ele tem de aprender, porque é “igual” a todos os outros”, afirmam alguns pais. Não, ele não é igual, ele é único e assim deve ser tratado, pode ser que ele seja o melhor em outras coisas, mas não em matemática.
Há um bom tempo atrás fui seminarista e na congregação havia uma história muito bonita. São Leonardo Murialdo recebeu na porta do abrigo para menores uma mãe que pedia ao padre que cuidasse de seu filho. Ele, sem ter condição para receber o menino, mas comovido com o pedido da mãe disse que ficaria com o menino se ele fosse bom em algo. O menino olha o padre e diz: “Mas padre, não sou bom em nada”. O padre se compadece do menino e diz: “Vamos fazer o seguinte, apostamos uma corrida”. Assim foi, o padre e o menino correram, o menino ganhou a corrida e ouviu do padre: “Viste, és bom em algo, em correr”. Assim ele recebeu mais um menino entre tantos outros que tinha em sua casa de assistência profissional. Cada um, à sua medida, é ou pode ser o melhor.
 
Rosemiro A. Sefstrom

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Crítica Construtiva

Recebi via e-mail esta semana a seguinte pergunta: “O que tu achas quando uma pessoa diz: “Vou fazer uma crítica construtiva?”” Para responder a esta pergunta, devemos retornar ao significado das palavras envolvidas na questão, para podermos dizer o que  se traduz por “crítica construtiva”. O temo “Crítica” é uma palavra que quer dizer análise, ou seja, ela tenta desenvolver um parecer técnico a respeito do que está em questão. Por ser uma análise técnica, como uma crítica de cinema, uma crítica de arte e até mesmo de um restaurante não tem como ser classificada como boa ou má. É apenas uma análise, que busca emitir um parecer e este tem por objetivos apontar pontos positivos e negativos do material em questão. No entanto, outra vertente diz que “crítica” é uma opinião desfavorável, como uma censura ou condenação. Já a palavra construtivo significa algo que serve para construir, como palavras que ajudam pessoas a viver melhor. Ainda quanto ao significado de construtivo pode-se dizer que é algo positivo, eficaz do ponto de vista prático.
Uma análise fria das palavras combinadas em uma mesma ideia pode dar a impressão de que estamos fazendo algo certo, uma análise eficaz, um estudo com finalidade prática. Se assim for entendida, parece viável, mas também pode ser entendida como uma condenação construtiva. Essa segunda forma de combinar os significados pareceu mais estranha, de certa forma até contraditória. As combinações e explicações em torno do uso dos termos e seus significados podem seguir num sem fim de combinações que funcionam e outras que simplesmente se contradizem.
Em Filosofia Clínica, quando uma pessoa usa uma frase como esta não sabemos o que significa antes de saber como a pessoa elaborou o que está nos dizendo e qual o significado para ela. Do meu jeito, posso interpretar como quiser e geralmente, pela região que estamos, uma “crítica” é algo ruim e não pode fazer par com algo bom. Seria como dizer ao filho que você está batendo nele batendo para que ele tenha um futuro melhor. Ele até pode entender, mas bater e educar parecem caminhos diferentes. Mas como faremos para saber o que a pessoa quer nos dizer com “crítica construtiva”? O caminho mais fácil de chegar a essa conclusão é perguntando à pessoa, como fazemos na clínica filosófica. Perguntaríamos à pessoa: “Você disse uma crítica construtiva, como assim?” Não preciso perguntar o que significa, com esta pergunta a pessoa me dará o que ela quer dizer com isto. Em muitos casos quem ouve está querendo ser literal e dizer que o que a pessoa expressou com o que disse foi tal e tal coisa. Pelo contrário, ela mesma ao analisar o que a outra pessoa disse está fazendo uma interpretação.
Em cada um de nós as palavras ganharam seus significados de acordo com nossa história, enquanto para uns a tal “crítica construtiva” é possível, para outros é simplesmente impensável. Cada palavra, cheiro, som, gosto pode estar ligado a uma série de conceitos que estão guardados em nosso intelecto. Quando nos expressamos, são estes conceitos que estão saindo, significados ao nosso jeito, da nossa maneira e segundo nossa história de vida. Então, se me perguntasse o que acho de uma crítica construtiva, não sei, teria de saber o que a pessoa que vai me criticar entende por “crítica construtiva”.


Rosemiro A. Sefstrom

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Apenas palavras

Palavra pode ser entendida como um conjunto de letras que significam algo. Ao longo da história da linguagem a palavra aos poucos deixou de ser ação: do primeiro grunhido primata às palavras mais bem elaboradas dos dias atuais o que se percebe é a distância entre a ação e a reflexão. Nos primeiros idiomas, por exemplo, entre os egípcios, a palavra era construída com símbolos retirados da realidade como uma águia, uma perna, uma pedra. Anos mais tarde os Sumérios desenvolveram a escrita Cuneiforme, que eram marcas feitas com um palito em uma tábua de argila. Depois destes vieram os Fenícios que desenvolveram o primeiro alfabeto, o qual continha apenas as consoantes. Os gregos, aproveitando-se deste alfabeto, inserem as vogais e constroem o alfabeto que é a base para o idioma que hoje falamos, o português.
Essa breve história do alfabeto mostra que no início o homem tinha a palavra vinculada aos objetos reais, já nos dias de hoje a letra “A”, por exemplo, só existe enquanto pensamento. Entre os gregos ainda a palavra era considerada uma ação, tanto que entre os gregos falar mal de um deus era atentar contra seu deus sob o risco de ser punido. Entre os cristãos os Dez Mandamentos também consideram a palavra uma ação, tanto que o segundo mandamento diz: “Não falarás o Santo nome de Deus em vão”. No entanto, não é isso que acontece nos dias de hoje. Concorda com isso o pensador Zygmunt Bauman que fala sobre as relações entre as pessoas via Facebook. Hoje, diferente dos dias em que a palavra era considerada uma ação, a palavra vale cada vez menos, sendo uma das grandes provas disso a crescente busca pelos cartórios para firmar acordos. O que antigamente, como se diz no Rio Grande, era no “fio do bigode”, hoje só vale se for preto no branco, se estiver especificado por escrito, levando em conta todas as armadilhas jurídicas possíveis.
As relações antes tinham uma base firme por meio do diálogo, em que um tinha plena confiança no que o interlocutor dizia, pois a palavra era uma verdade, um compromisso. Hoje as relações continuam sendo construídas sobre a palavra, mas estas agora já não servem mais como verdade, porque posso, por exemplo, postar no “Face”, mas logo depois apagar. O que para Sócrates era impensável, dizer algo que fosse inverdade para sustentar-se vivo, hoje é feito por muito menos. Para Sócrates o que ele dizia fazia parte dele, definia a ele mesmo, enquanto pregava estava falando de si mesmo enquanto pensador, enquanto pessoa. De certa forma este pensador, assim como muitos outros, têm clareza de que o que dizem define a si próprios.
O jovem que cria sua pagina no “Face” e ali começa a divulgar suas músicas, filmes, assuntos, fotos, não percebe que está definindo a si mesmo. Muitos destes jovens criam no ambiente virtual uma pessoa que não existe de fato, é um ser apenas reflexivo. Uma pessoa com quem se pode relacionar apenas via “Face”, pois no mundo real ela não existe e qualquer um que a conheça “face” a “face” perceberá a distância entre o ser virtual (reflexivo) e o ser real (ação). A ação já não é mais valorizada como foi entre os filósofos que davam suas vidas pelo seu discurso, facilmente hoje pode-se apagar um comentário na internet.
A palavra já não é mais entendida como base para a verdade, pois não é mais considerada uma ação. Hoje a palavra tem um valor tão pequeno que só tem valor se houver provas de sua veracidade. O jovem criado a partir das próprias palavras tem cada vez menos crédito, justamente por não dar crédito às próprias palavras.

Rosemiro A. Sefstrom