Encontro Nacional

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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Viver da morte

Há pouco tempo ficamos sabendo que um grande amigo estava doente, acompanhamos a distância todo o seu tratamento e o sofrimento da família. Depois de certo tempo estava ele recuperado de um grave problema no fígado, era assim que parecia. Pouco tempo depois o problema retorna e agora somente um transplante pode realmente mantê-lo vivo. Diante desta situação sua esposa comenta em uma conversa: “é ruim imaginar que alguém deve morrer para ele viver”. Para ela não é um dilema vazio, mas a dura realidade de que alguém vai ter de morrer para que seu marido continue vivo. Para ela, o fato de o marido viver da morte de outra pessoa é algo que desconforta, incomoda. Depois de refletir um pouco sobre sua situação pensei na minha própria, de terapeuta. Por natureza um terapeuta é alguém que vive do sofrimento de outras pessoas, ou seja, se não houvesse sofrimento, dor, provavelmente não haveria ganhos. Há, muito provavelmente, muitos outros profissionais que vivem da morte do outro, do sofrimento alheio.
No entanto, quando uma pessoa chega ao ponto de precisar de transplante, por qualquer motivo que seja ela está dando ao órgão da pessoa que faleceu a chance de continuar vivo. Por exemplo, morre um jovem em um acidente de automóvel, seus órgãos estão em perfeito estado, a pessoa que precisa destes órgãos pode dar a eles continuidade de vida. Já houve alguns casos em que a família do doador vê na pessoa que recebeu o órgão a continuidade da vida, alguém com quem estabelecem um vínculo para o resto da vida. Por mais que a pessoa que precisa de transplante espere pela morte de alguém para continuar vivendo não é ela quem diz quem e quando vai morrer para obter o que precisa. É ela o receptáculo para a continuidade, a oportunidade que um órgão tem de continuar vivendo, como uma parte de uma pessoa que continua sua jornada em outro lugar.
Na terapia não é muito diferente: o terapeuta é aquele que, mais do que muitas outras pessoas, consegue trabalhar com a dor do outro. É ele a pessoa que tem as condições para, mesmo com toda a dor que compartilha com a pessoa, encontrar um caminho onde não exista dor ou sofrimento. Não é o terapeuta quem provoca ou deseja a dor, mas sim aquele que estuda, se prepara, para estar diante de alguém como um caminho. Muito ao contrário do que parece, não vive ele da dor das pessoas que lhe procuram, mas da alegria de suas realizações, do encantamento de seus sonhos, do brilho ainda existente em cada olhar. Quando não consegue auxiliar uma pessoa em seu caminho também se chateia, chora, sofre a dor de não ter conseguido.
Assim, profissionais que pretensamente vivem da morte do outro, assim como pessoas que esperam pela morte do outro para a doação do órgão, são as oportunidades de a vida continuar. É muito provável que um médico não tenha como sonho ver as pessoas doentes, mas que elas estejam bem, saudáveis. A dor e a doença fazem parte da vida de cada um, assim como os profissionais que abraçaram a causa de estar junto nos momentos mais difíceis. Muitos destes profissionais dedicam suas vidas para que os outros possam continuar vivos, dedicam sua saúde para que outros possam permanecer saudáveis, dedicam sua sanidade para que outros permaneçam sãos. Não se vive da morte do outro, mas se dá oportunidade do outro continuar vivo em mim.

OBS.: Esta é uma fotografia tirada por mim do Santo Sepulcro em Jerusalém/ Israel.

Rosemiro A. Sefstrom

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